03/01/2011

Perguntas de criança - Rubem Alves

Há muita sabedoria pedagógica nos ditos populares. Como naquele que diz:
"É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencê-la a
beber a água". De fato: se a égua não estiver com sede, ela não beberá
água, por mais que o seu dono a surre... Mas, se estiver com sede, ela,
por vontade própria, tomará a iniciativa de ir até o ribeirão. Aplicado
à educação: "É fácil obrigar o aluno a ir à escola. O difícil é
convencê-lo a aprender aquilo que ele não quer aprender".

Às vezes, eu penso que o que as escolas fazem com as crianças é tentar
forçá-las a beber a água que não querem beber. Brunno Bettelheim, um dos
maiores educadores do século 20, dizia que, na escola, seus professores
tentaram ensinar-lhe coisas que queriam ensinar, mas que ele não queria
aprender. Não aprendeu e, ainda por cima, ficou com raiva. Que as
crianças querem aprender, disso não tenho a menor dúvida. Vocês devem se
lembrar do que escrevi, corrigindo a afirmação com que Aristóteles
começa a sua "Metafísica": "Todos os homens, enquanto crianças, têm, por
natureza, desejo de conhecer".

Mas o que é que as crianças querem aprender? Pois, faz uns dias, recebi
de uma professora, Edith Chacon Theodoro, uma carta digna de uma
educadora e, anexada a ela, uma lista de perguntas que seus alunos
haviam feito, espontaneamente. "Por que o mundo gira em torno dele e do
Sol? Por que a vida é justa com poucos e tão injusta com muitos? Por que
o céu é azul? Quem foi que inventou o português? Como foi que os homens
e as mulheres chegaram a descobrir as letras e as sílabas? Como a
explosão do Big Bang foi originada? Será que existe inferno? Como pode
ter alguém que não goste de planta? Quem nasceu primeiro, o ovo ou a
galinha? Um cego sabe o que é uma cor? Se na Arca de Noé havia muitos
animais selvagens, por que um não comeu o outro? Para onde vou depois de
morrer? Por que eu adoro música e instrumentos musicais se ninguém na
minha família toca nada? Por que sou nervoso? Por que há vento? Por que
as pessoas boas morrem mais cedo? Por que a chuva cai em gotas, e não
tudo de uma vez?"

José Pacheco é um educador português. Ele é o diretor (embora não aceite
ser chamado de diretor, por razões que um dia vou explicar) da Escola da
Ponte, localizada na pequena cidade de Vila das Aves, ao norte de
Portugal. É uma das escolas mais inteligentes que já visitei. Ela é
inteligente porque leva muito mais a sério as perguntas que as crianças
fazem do que as respostas que os programas querem fazê-las aprender.
Pois ele me contou que, em tempos idos, quando ainda trabalhava numa
outra escola, provocou os alunos para que escrevessem numa folha de
papel as perguntas que faziam cócegas na curiosidade e que ficavam
rolando dentro das suas cabeças, sem resposta. O resultado foi parecido
com o que transcrevi acima. Entusiasmado com a inteligência das crianças
pois é nas perguntas que a inteligência se revela, resolveu fazer
experiência parecida com os professores. Pediu-lhes que colocassem numa
folha de papel as perguntas que gostariam de fazer. O resultado foi
surpreendente: os professores só fizeram perguntas relativas aos
conteúdos dos seus programas. Os professores de geografia fizeram
perguntas sobre acidentes geográficos, os professores de português
fizeram perguntas sobre gramática, os professores de his-tória fizeram
perguntas sobre fatos históricos, os professores de mate-mática
propuseram problemas de matemática a serem resolvidos e assim por
diante.

O filósofo Ludwig Wittgenstein afirmou: "Os limites da minha linguagem
denotam os limites do meu mundo". Minha versão popular: "As perguntas
que fazemos revelam o ribeirão onde queremos ir beber..." Leia de novo e
vagarosamente as perguntas feitas pelos alunos. Você verá que elas
revelam uma sede imensa de conhecimento!

Os mundos das crianças são imensos! Sua sede não se mata bebendo a água
de um mesmo ribeirão! Querem águas de rios, de lagos, de lagoas, de
fontes, de minas, de chuva, de poças d'água... Já as perguntas dos
professores revelam (perdão pela palavra que vou usar! É só uma
metáfora, para fazer ligação com o ditado popular!) éguas que perderam a
curiosidade, felizes com as águas do ribeirão conhecido... Ribeirões
diferentes as assustam, por medo de se afogarem... Perguntas falsas: os
professores sabiam as respostas... Assim, elas nada revelavam do espanto
que se tem quando se olha para o mundo com atenção. Eram apenas a
repetição da mesma trilha batida que leva ao mesmo ribeirão...

Eu sempre me preocupei muito com aquilo que as escolas fazem com as
crianças. Agora estou me preocupando com aquilo que as escolas fazem com
os professores. Os professores que fizeram as perguntas já foram
crianças; quando crianças, suas perguntas eram outras, seu mundo era
outro... Foi a instituição "escola" que lhes ensinou a maneira certa de
beber água: cada um no seu ribeirão... Mas as instituições são criações
humanas. Podem ser mudadas. E, se forem mudadas, os professores
aprenderão o prazer de beber águas de outros ribeirões e voltarão a
fazer as perguntas que faziam quando eram crianças.

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