03/01/2011

A escola dos meus sonhos - Por Frei Betto

Na escola dos meus sonhos, os alunos aprendem a cozinhar, costurar, consertar eletrodomésticos, a fazer pequenos reparos de eletricidade e de instalações hidráulicas, a conhecer mecânica de automóvel e de geladeira e algo de construção civil. Trabalham em horta, marcenaria e oficinas de escultura, desenho, pintura e música. Cantam no coro e tocam na orquestra.
Uma semana ao ano integram-se, na cidade, ao trabalho de lixeiros, enfermeiras, carteiros, guardas de trânsito, policiais, repórteres, feirantes e cozinheiros profissionais. Assim aprendem como a cidade se articula por baixo, mergulhando em suas conexões que, à superfície, nos asseguram limpeza urbana, socorro de saúde, segurança, informação e alimentação.

Não há temas tabus. Todas as situações-limite da vida são tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade. Ali os alunos aprendem o texto dentro do contexto: a Matemática busca exemplos na corrupção dos precatórios e nos leilões das privatizações; o Português, na fala dos apresentadores de TV e nos textos de jornais; a Geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a Física, nas corridas de Fórmula-1 e nas pesquisas do supertelescópio Huble; a Química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a História, na violência de policiais contra cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores – índios, senhores – escravos, Exército – Canudos, etc.

Na escola dos meus sonhos, a interdisciplinaridade permite que os professores de Biologia e de Educação Física se complementem; a multidisciplinaridade faz com que a História do livro seja estudada a partir da análise de textos bíblicos; a transdisciplinaridade introduz aulas de meditação e dança e associa a história da arte à história das ideologias e das expressões litúrgicas.
Se a escola for laica, o ensino religioso é plural: o rabino fala do judaísmo, o pai-de-santo, do candomblé; o padre, do catolicismo; o médium, do espiritismo; o pastor, do protestantismo; o guru, do budismo, etc. Se for católica, há periódicos retiros espirituais e adequação do currículo ao calendário litúrgico da Igreja.

Na escola dos meus sonhos, os professores são obrigados a fazer periódicos treinamentos e cursos de capacitação e só são admitidos se, além da competência, comungam os princípios fundamentais da proposta pedagógica e didática. Porque é uma escola com ideologia, visão de mundo e perfil definido do que sejam democracia e cidadania. Essa escola não forma consumidores, mas cidadãos.

Ela não briga com a TV, mas leva-a para a sala de aula: são exibidos vídeos de anúncios e programas e, em seguida, analisados criticamente. A publicidade do iogurte é debatida; o produto adquirido; sua química, analisada e comparada com a fórmula declarada pelo fabricante; as incompatibilidades denunciadas, bem como os fatores porventura nocivos à saúde. O programa de auditório de domingo é destrinchado: a proposta de vida subjacente, a visão de felicidade, a relação animador-platéia, os tabus e preconceitos reforçados, etc. Em suma, não se fecham os olhos à realidade, muda-se a ótica de encará-la.
Há uma integração entre escola, família e sociedade. A Política, com P maiúsculo, é disciplina obrigatória. As eleições para o grêmio ou diretório estudantil são levadas a sério e, um mês por ano, setores não vitais da instituição são administrados pelos próprios alunos. Os políticos e candidatos são convidados para debates e seus discursos analisados e comparados às suas práticas.

Não há provas baseadas no prodígio da memória nem na sorte da múltipla escolha. Como fazia meu velho mestre Geraldo França de Lima, professor de História (hoje romancista e membro da Academia Brasileira de Letras), no dia da prova sobre a Independência do Brasil, os alunos traziam para a classe a bibliografia pertinente e, dadas as questões, consultavam os textos, aprendendo a pesquisar.
Não há coincidência entre o calendário gregoriano e o curricular. João pode cursar a 5ª série em seis meses ou em seis anos, dependendo de sua disponibilidade, aptidão e seus recursos.
É mais importante educar do que instruir; formar pessoas que profissionais; ensinar a mudar o mundo que ascender à elite. Dentro de uma concepção holística, ali a ecologia vai do meio ambiente aos cuidados com nossa unidade corpo-espírito e o enfoque curricular estabelece conexões com o noticiário da mídia.

Na escola dos meus sonhos, os professores são bem pagos e não precisam pular de colégio em colégio para se poderem manter. Pois é a escola de uma sociedade em que educação não é privilégio, mas direito universal, e o acesso a ela, dever obrigatório.

Texto extraído da coluna Espaço Aberto do Jornal O Estado de S. Paulo, 14/05/97

Destrua as calhas - Por Célestin Freinet

Célestin Freinet, gosto dele, e penso ser agora, oportuno, além de muito atual... pois estamos iniciando um ano, 2011, e sempre é bom, sempre é tempo... de repensar e projetar mudanças.

Sejamos francos: se deixássemos, aos pedagogos, o cuidado exclusivo de iniciar as crianças na manobra da bicicleta, não teríamos muitos ciclistas.
Seria necessário, com efeito, antes de montar a bicicleta, conhecê-la – elementar, não é mesmo? – pormenorizar as peças que a compõem e fazer, com bons resultados, numerosos exercícios sobre os princípios mecânicos da transmissão e do equilíbrio.
Depois, mas só depois, a criança seria autorizada a montar na bicicleta. Oh! Não se preocupe! Não a lançariam impensadamente por uma estrada difícil, onde correria o risco de ferir os transeuntes. Os pedagogos teriam providenciado boas bicicletas de estudo, montadas em calhas, girando em vão, nas quais aprenderia, sem riscos a manter-se no selim e pedalar.
E, é claro, só quando o aluno soubesse andar de bicicleta é que o deixariam aventurar-se livremente na máquina.
Felizmente as crianças aniquilam, de antemão, os projetos prudentes demais e metódicos demais dos pedagogos. Descobrem, no celeiro, uma velha maquineta, sem pneus nem freios e, às escondidas, aprendem, em pouco instantes, a andar de bicicleta, como aliás aprendem todas as coisas: sem qualquer conhecimento de regras e de princípios, agarram-se à máquina, orientam-se para a descida e.... vão aterrar contra um talude. Recomeçam obstinadamente e, em tempo recorde, sabem andar de bicicleta. A prática fará o resto.
Quando, em seguida, para andar melhor, tiverem de consertar um pneu, ajustar um raio ou colocar a corrente, desejarão conhecer, através dos colegas, dos livros ou do professor, o que, em vão, você lhes havia tentado inculcar.
Na origem de toda a conquista está, não só o conhecimento, que só vem normalmente em função das necessidades da vida, mas a experiência, o exercício e o trabalho.
Neste início de ano, destrua as calhas, apronte as bicicletas!

PENSAMENTOS de Jorge Larrosa

"Essa é uma bela imagem para um professor: alguém que conduz alguém até si mesmo. É também uma bela imagem para alguém que aprende: não alguém que se converte num sectário, mas alguém que, ao ler com o coração aberto, volta-se para si mesmo, encontra sua própria forma, sua maneira própria."

“A formação é uma viagem aberta, uma viagem que não pode estar antecipada, e uma viagem interior, uma viagem na qual alguém se deixa influenciar a si próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro... a experiência formativa e a experiência estética não são transitivas... não vão de alguém para alguém, mas acontecem a alguém com alguém...”

A Professora e a Maleta - Desconheço autoria


A Professora era gorducha; a maleta também. A Professora era jovem; a maleta era velha,
meio estragada e de um lado tinha um desenho de um garoto e uma garota de mãos
dadas. Vestido igual, cabelo igual, sorriso igual!
A Professora gostava de ver a classe contente. Mal entrava na classe e já ia contando
uma coisa engraçada. Depois abria a maleta e escolhia o pacote do dia. Tinha pacotes
pequenininhos, médios, grandes tinha pacote embrulhado em papel de seda, metido em
saquinho de plástico, tinha pacote de tudo quanto é cor. Não era à toa que a maleta ficava
gorda daquele jeito!
Só pela cor do pacote as crianças já sabiam o que ia acontecer: pacote azul era dia de
inventar brincadeiras de juntar menina e menino; não ficava mais valendo aquela história
mofada de menino só brincar disso, menina só brinca daquilo, meninos do lado de cá,
meninas do lado lá. Pacote cor-de-rosa era dia de aprender a cozinhar. A Professora
remexia no pacote, entrava e saia da classe e,de repente pronto! Mostrava um fogão com
botijãozinho de gás e tudo. Era um tal de experimentar receita que só vendo. Um
dia a diretora da escola entrou na sala, justo na hora que o Alexandre estava ensinando
outro garoto a fazer bolinhos de trigo. Uma fumaceira medonha na sala de aula! Todas
as crianças em volta do fogão palpitando: falta sal, bota pimenta, bota um pouquinho de
salsa. A diretora sabia que estava na hora da aula de matemática. Que matemática era
aquela que a Professora estava inventando? Não gostou da invenção, mas saiu sem dizer
nada.
Pacote vermelho era de viajar: saia retrato do mundo inteiro lá de dentro do pacote.
Espalhavam aquilo tudo pela classe; enfileiravam as carteiras para fingir de avião e de
trem. Quando chegavam aos retratos, um ia contando para o outro tudo o que sabia sobre
aquele lugar.
Tinha um pacote cor de burro quando foge que a Professora nunca chegou a abrir! Todo
dia ela botava o pacote em cima da mesa. Mas na hora de abrir, ficava pensando se abria
ou não e acabava guardando o pacote de novo.
Pacote verde era dia de aprender a pregar botão, botar fecho, fazer bainha na calça e na
saia. Se o verde era bem forte, era dia de aprender a cortar a unha e cabelo. Verde bem
clarinho era dia de consertar e limpar os sapatos. E tinha ainda um verde, que não era
forte nem claro: era um amarelo que as crianças adoravam. Era dia da Professora abrir o
pacote de história. Cada história ótima!
Tinha um pacote branco, que só servia para a professora esconder e para a turma brincar
de achar. Quem achava ia para o quadro negro dar aula. No princípio ninguém procurava
direito. Coisa mais chata dar aula! E aula de quê?
_ Conta a tua vida. Mostra o que você sabe fazer.
Com o tempo, a turma deu para procurar direito o pacote. Era muito engraçada a tal aula!
No dia em que o Alexandre achou o pacote, resolveu contar para a turma como é que
ele vendia amendoim na praia. No melhor da aula, um grupo de pais de alunos que
visitando a escola entrou na sala. Quando a aula acabou um deles perguntou a Professora:
− A senhora está querendo ensinar meu filho a ganhar a vida vendendo amendoim?
A Professora explicou que Alexandre só estava contando para os colegas como era o
trabalho dele, para todos ficarem sabendo como é que ele vivia.
No outro dia saiu fofoca: contaram para o Alexandre que tinha um pessoal que não estava
gostando da maleta da Professora.
Um disse que era a diretora, outro disse que era uma outra professora, outro disse que
outro falou, mas ninguém ficou sabendo direito!
Uns dias depois choveu muito! Chuva grossa. Encheu a rua, o tráfego da cidade parou,
casa desmoronou. Coisa a beça aconteceu. E quase ninguém foi à Escola. Mas Alexandre
foi.
Entrou na classe e viu tudo vazio. Chovia demais para voltar para casa. Resolveu sentar
e esperar. Lá pelas tantas a Professora chegou. Mas chegou sem a maleta. E com jeito
diferente, uma cara meio inchada, não contou coisa engraçada, não riu nem nada. Sentou
e ficou olhando para o chão. Alexandre achou que ela nem tinha visto ele.
Ela também disse oi! Mas continuou quieta. Depois de algum tempo, Alexandre cansou
de tanto ninguém dizer nada e falou:
A professora nem se mexeu. Ele perguntou:
Ela fez que sim com a cabeça. Alexandre resolveu esperar mais um pouco. Mas pelo jeito
a Professora tinha esquecido de dar aula. Será que era porque ela não tinha trazido a
maleta? Arriscou:
A Professora olhou para ele sem saber muito bem o que dizer. Ele insistiu:
Puxa que susto! Ela nunca tinha falado alto assim. Não perguntou mais nada. O coração
ficou batendo, batendo, mas ela continuava sempre quieta até que ele não se aguentou e
perguntou de novo:
_ E agora? Como é que vai dar aula sem maleta?
_ Dá jeito de você comprar os pacotes de novo?
_ Eles vêm junto com a maleta? Não vendem separados?
_ Mas então compra outra maleta. Pronto.
Ela ficou quieta de novo. E o tempo ia passando e ela continuava sempre quieta! A cara
dela não secava nunca e não chovia lá dentro. Cada vez molhava mais! Então ele acabou
pedindo:
_ Não dá Alexandre, eles não estão mais fabricando essas maletas hoje em dia.
E aí... ele não perguntou mais nada. Ela também não falou mais. Até que a campainha
tocou e a aula acabou.

PENSAMENTO (José Saramago)

E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?

Perguntas de criança - Rubem Alves

Há muita sabedoria pedagógica nos ditos populares. Como naquele que diz:
"É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencê-la a
beber a água". De fato: se a égua não estiver com sede, ela não beberá
água, por mais que o seu dono a surre... Mas, se estiver com sede, ela,
por vontade própria, tomará a iniciativa de ir até o ribeirão. Aplicado
à educação: "É fácil obrigar o aluno a ir à escola. O difícil é
convencê-lo a aprender aquilo que ele não quer aprender".

Às vezes, eu penso que o que as escolas fazem com as crianças é tentar
forçá-las a beber a água que não querem beber. Brunno Bettelheim, um dos
maiores educadores do século 20, dizia que, na escola, seus professores
tentaram ensinar-lhe coisas que queriam ensinar, mas que ele não queria
aprender. Não aprendeu e, ainda por cima, ficou com raiva. Que as
crianças querem aprender, disso não tenho a menor dúvida. Vocês devem se
lembrar do que escrevi, corrigindo a afirmação com que Aristóteles
começa a sua "Metafísica": "Todos os homens, enquanto crianças, têm, por
natureza, desejo de conhecer".

Mas o que é que as crianças querem aprender? Pois, faz uns dias, recebi
de uma professora, Edith Chacon Theodoro, uma carta digna de uma
educadora e, anexada a ela, uma lista de perguntas que seus alunos
haviam feito, espontaneamente. "Por que o mundo gira em torno dele e do
Sol? Por que a vida é justa com poucos e tão injusta com muitos? Por que
o céu é azul? Quem foi que inventou o português? Como foi que os homens
e as mulheres chegaram a descobrir as letras e as sílabas? Como a
explosão do Big Bang foi originada? Será que existe inferno? Como pode
ter alguém que não goste de planta? Quem nasceu primeiro, o ovo ou a
galinha? Um cego sabe o que é uma cor? Se na Arca de Noé havia muitos
animais selvagens, por que um não comeu o outro? Para onde vou depois de
morrer? Por que eu adoro música e instrumentos musicais se ninguém na
minha família toca nada? Por que sou nervoso? Por que há vento? Por que
as pessoas boas morrem mais cedo? Por que a chuva cai em gotas, e não
tudo de uma vez?"

José Pacheco é um educador português. Ele é o diretor (embora não aceite
ser chamado de diretor, por razões que um dia vou explicar) da Escola da
Ponte, localizada na pequena cidade de Vila das Aves, ao norte de
Portugal. É uma das escolas mais inteligentes que já visitei. Ela é
inteligente porque leva muito mais a sério as perguntas que as crianças
fazem do que as respostas que os programas querem fazê-las aprender.
Pois ele me contou que, em tempos idos, quando ainda trabalhava numa
outra escola, provocou os alunos para que escrevessem numa folha de
papel as perguntas que faziam cócegas na curiosidade e que ficavam
rolando dentro das suas cabeças, sem resposta. O resultado foi parecido
com o que transcrevi acima. Entusiasmado com a inteligência das crianças
pois é nas perguntas que a inteligência se revela, resolveu fazer
experiência parecida com os professores. Pediu-lhes que colocassem numa
folha de papel as perguntas que gostariam de fazer. O resultado foi
surpreendente: os professores só fizeram perguntas relativas aos
conteúdos dos seus programas. Os professores de geografia fizeram
perguntas sobre acidentes geográficos, os professores de português
fizeram perguntas sobre gramática, os professores de his-tória fizeram
perguntas sobre fatos históricos, os professores de mate-mática
propuseram problemas de matemática a serem resolvidos e assim por
diante.

O filósofo Ludwig Wittgenstein afirmou: "Os limites da minha linguagem
denotam os limites do meu mundo". Minha versão popular: "As perguntas
que fazemos revelam o ribeirão onde queremos ir beber..." Leia de novo e
vagarosamente as perguntas feitas pelos alunos. Você verá que elas
revelam uma sede imensa de conhecimento!

Os mundos das crianças são imensos! Sua sede não se mata bebendo a água
de um mesmo ribeirão! Querem águas de rios, de lagos, de lagoas, de
fontes, de minas, de chuva, de poças d'água... Já as perguntas dos
professores revelam (perdão pela palavra que vou usar! É só uma
metáfora, para fazer ligação com o ditado popular!) éguas que perderam a
curiosidade, felizes com as águas do ribeirão conhecido... Ribeirões
diferentes as assustam, por medo de se afogarem... Perguntas falsas: os
professores sabiam as respostas... Assim, elas nada revelavam do espanto
que se tem quando se olha para o mundo com atenção. Eram apenas a
repetição da mesma trilha batida que leva ao mesmo ribeirão...

Eu sempre me preocupei muito com aquilo que as escolas fazem com as
crianças. Agora estou me preocupando com aquilo que as escolas fazem com
os professores. Os professores que fizeram as perguntas já foram
crianças; quando crianças, suas perguntas eram outras, seu mundo era
outro... Foi a instituição "escola" que lhes ensinou a maneira certa de
beber água: cada um no seu ribeirão... Mas as instituições são criações
humanas. Podem ser mudadas. E, se forem mudadas, os professores
aprenderão o prazer de beber águas de outros ribeirões e voltarão a
fazer as perguntas que faziam quando eram crianças.